Sunday, September 04, 2016

Aquarius, um tratado sobre a resistência


Sonia Braga começou a ganhar notoriedade no Brasil em 1968, quando participou da montagem brasileira do musical “Hair”, que tinha como um de seus temas a música “Age of Aquarius”. Nas peças de divulgação do longa “Aquarius”, do diretor Kleber Mendonça Filho, não vi nenhuma indicação de que o nome da obra faça algum tipo de homenagem ou referência ao início da carreira da atriz. No filme, “Aquarius” é o nome do edifício onde a personagem de Sonia mora, e centro do conflito em torno do qual a história foi construída.

Ainda que esta seja apenas uma coincidência, não é incorreto dizer que “Aquarius”, o filme, é um estudo de personagem que dificilmente teria a força que se traduz na tela sem a interpretação de Sonia Braga. O que, ao mesmo tempo, não quer dizer que os elementos que alicerçam a obra sejam desprezíveis nem ao menos acessórios. Começando pelo roteiro, escrito pelo próprio diretor.

A história de “Aquarius” é muito simples: crítica de música aposentada, Clara (Sonia Braga) mora em um pequeno edifício na avenida da praia, no Recife, que é alvo de uma incorporadora imobiliária. Todos os demais proprietários já venderam seus apartamentos, menos Clara, que não quer se mudar do local e enfrenta, por isso, uma série de conflitos, com os donos dessa empresa, com sua família, com outros antigos proprietários e com a estranha fauna que passa a frequentar o prédio.

Como já havia feito em “O som ao redor”, seu excelente primeiro longa de ficção, Mendonça estruturou o roteiro em três capítulos, oferecendo ao espectador o (falso) conforto de dominar os três atos da obra. Volto ao parêntesis depois. No primeiro capítulo, a personagem principal é apresentada, começando com uma sequência ocorrida no passado, precisamente em 1980. E já é admirável observar a reconstituição da época ali apresentada, mais um trunfo de “Aquarius”.

Sonia, o diretor Kleber e Humberto Carrão


Em uma festinha familiar, ali estão as garrafas de refrigerante de vidro, as mulheres com blusas de ana-ruga (acho que esse tecido caiu em extinção...), os meninos com shorts muito curtos, que os deixavam a todos meio pernaltas. Com cabelos também muito curtos, Clara é logo mostrada como alguém que sobreviveu a um câncer e a seu agressivo tratamento. É natural, esperado e quase impossível não se identificar com aquela mulher que se mostra, nos primeiros momentos, como uma resistente.

É também sintomático que o roteiro já circunde Clara, naquele momento, de figuras que não farão parte da sua vida futura, o período que ocupa a grande parte da história, dando pistas inequívocas de que o passado daquela mulher talvez seja seu maior patrimônio. A voz de Freddie Mercury, a canção de Altemar Dutra, a citação a Elis Regina, a presença da tia e do marido: tudo isso serão lembranças na vida da Clara sexagenária, que surge marcada pelo tempo, mas ainda bela e vigorosa e, sobretudo, serena em sua nova vida de aposentada.

Outro detalhe fundador da personalidade de Clara é dado em um breve diálogo da personagem com sua empregada, logo no início da história: a relação de hierarquia, a estratificação social estão ali estabelecidas. Clara é pequeno-burguesa e se beneficia do privilégio de ter alguém para servi-la, mas a gentileza, quase doçura, com que se dirige à diligente Ladjane (Zoraide Coleto) mostra que estamos diante de uma mulher que cultua a empatia, outro ponto a favor da identificação do público com a protagonista.

O desempenho de Sonia Braga é magnífico em “Aquarius”. Ponto. Mas, se o filme se torna uma daquelas referências nas quais não se consegue imaginar outro ator para o papel, isso também é mérito da direção de Mendonça e do ritmo que ele imprime às quase duas horas e meia de projeção. As referências à música são constantes no filme – e nem poderia ser diferente, porque Clara é uma jornalista e crítica de música aposentada e porque som e música já são referências da obra do diretor. Nesse sentido, se fosse uma peça musical, “Aquarius” seria uma sinfonia que começa em intensidade pianíssimo e termina em fortisíssimo (assim mesmo, cheio de “esses” e de fúria). Ainda que a cena de abertura do filme traga um grupo de jovens escutando música em volume alto no carro, o ruído externo desse começo parecerá silêncio perto do grito do ato final. 

A direção de Mendonça é a mão discreta e ao mesmo tempo segura que vai guiando Clara, seus companheiros e fantasmas por uma narrativa que descreve aparentemente um conflito urbano frequente nos dias atuais. Mas que, com um pouco de sensibilidade, pode estar descrevendo o Brasil, e também retomo essa ideia no final.

Mendonça, evidentemente um cinéfilo cheio de referências, imprime enorme variedade de linguagens em “Aquarius”. É capaz de criar, com a mesma habilidade, planos abertos que situam o espectador na Recife que acolhe a história e diálogos internos cheios de tensão, como aquele que coloca os três filhos de Clara (Maeve Jinkings, Germano Melo e Pedro Queiroz) de um lado, a mãe do outro, como em um ringue. Independentemente dos golpes eficientes dos mais jovens, embasados em preocupações genuínas, o espectador naturalmente se coloca do lado oposto, torcendo e quase tendo certeza de que a parte aparentemente mais frágil da história levará os três oponentes às cordas, e os nocauteará com uma firmeza desconcertante.

Com essa mesma habilidade, o diretor apoia-se todo tempo em uma condução generosa, transparecendo não apenas a confiança nos atores como também a aposta na criação coletiva. Essa busca de autenticidade chega a criar trechos com evidente sintoma de improviso nos diálogos, como na cena da conversa de um grupo de mulheres em um baile “de terceira idade”, filha legítima do Neorealismo italiano, ou da Nouvelle Vague francesa. Esta, por sinal, também parece legar à narrativa uma breve, mas poderosa sequência de cortes secos, mostrando Clara sozinha em seu apartamento, como reforço à ideia de que o fato de estar ali, sozinha, não significa letargia ou tédio, já que seu espírito não se contém diante do conflito maior – e dos menores – com que tem de lidar.

Chegando ao terceiro e instigante capítulo, “O câncer de Clara”, o roteiro desconstrói o aparente controle do espectador sobre aquela obra em três atos, e aqui retomo o parêntesis do início. No lugar de um desfecho conformista e eventualmente esperado para a vida de uma mulher sexagenária, a história vai ganhando uma tensão cada vez mais aguda. Prolongando o suspense em perfeita tradição hitchcockiana, a trama se apoia em diversos elementos que não apenas justificam como tornam praticamente inevitável o gesto final da protagonista. E é digno de aplauso o recurso engendrado pelo roteirista/diretor de contar sem mostrar, sugerir sem explicitar, um Polanski pernambucano parindo um bebê demoníaco cheio de vida nauseante em plena praia de Boa Viagem.

Protesto em Cannes: "Aquarius" tem lado


Clara, a mulher aparentemente apegada ao passado, é também a mente mais transgressora de toda a trama, seja pela maneira como assimila as mudanças do mundo ou pela forma como lida com a própria sexualidade e com a incompreensão estúpida ou ingênua sobre ela, dos homens que a cercam. A assimilação do novo é extraordinariamente exposta na sequência em que Clara explica a uma repórter como se relaciona às várias mídias de música do presente. O semblante pouco inteligente da jovem jornalista deixa evidente que ela não entendeu nada do contexto que a veterana colega expôs. Caberá à repórter um mero esforço para enquadrar a antiga crítica em uma frase-manchete que certamente já saiu escrita da redação, antes sequer de ser feita a entrevista.

Mas é no embate com o jovem administrador de empresas Diego (Humberto Carrão), o maior antagonista da trama, que Clara dá voz ao discurso mais forte, resistente e contundente de “Aquarius”. Aquele velho edifício, que por força do dinheiro vira literalmente uma suruba e ao mesmo tempo um ninho de evangélicos, cabe como metáfora do Brasil atual, sempre e ainda dominado por oligarquias que só enxergam seus próprios interesses, agindo de forma diametralmente oposta aos gestos empáticos de Clara. Um autêntico câncer corrói “Aquarius” – o edifício e o Brasil – e não deixa de ser melancolicamente tocante supor que “o país do futuro” possa continuar sendo tão mais “casa grande & senzala” do que “era de Aquarius” como, há quase 50 anos, a jovem Sonia Braga, nua em cima do palco, ousou sonhar.

O discurso político de “Aquarius” é claro, direto e tem lado: o da resistência. Surgido no limiar de um período nascido de um golpe, o filme de Kleber Mendonça Filho provavelmente será visto como símbolo do pensamento oposto a ele. Daqui alguns anos, quando alguns estiverem se desculpando pelo apoio ao golpe, Mendonça estará sereno, com a consciência tão limpa quanto a de Clara, polindo algum dos muitos prêmios que “Aquarius” já recebeu mundo afora.

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