Tuesday, October 28, 2014

Sabedoria lusitana

Portuguesa, vice-campeã do Brasileiro de 1996
Era um daqueles finais de tarde de caos em São Paulo. Dezembro, uma chuva de verão pesada, trânsito travado. Eu trabalhava no Centro Empresarial e morava em Santana. Em linha reta, uns 25 km. Nas rotas tortas para fugir dos congestionamentos, podia ultrapassar os 35, fácil. Naquele dia, nem rota alternativa salvaria. Saí do trabalho às seis da tarde. Eram mais de nove e eu ainda não tinha nem atravessado o Rio Tietê. Minha aflição não era a chuva, mas o jogo. A Portuguesa entraria em campo em poucos minutos para a primeira partida da final do Campeonato Brasileiro, contra o Grêmio

Seria a primeira final da Lusa que eu assistiria com meu pai, torcedor do time. Na única vez em que isso aconteceu, 1973, eu era pequena demais, não tinha nenhuma lembrança da conturbada final do Paulista daquele ano, quando o juiz Armando Marques errou na contagem dos pênaltis no jogo contra o Santos. Um pai torcedor da Lusa. Era como ter um pai astronauta. Ou cantor de ópera. Ou mergulhador em águas profundas. Dificilmente alguém diria: ah, meu pai também. Dava um sentimento de diferenciação, eu me sentia exótica.

O jogo começou e eu lá, na Avenida Tiradentes, na frente da Pinacoteca. O primeiro tempo estava quase acabando quando Alexandre Gallo abriu o placar para a Lusa. Ouvindo, pelo rádio do carro, pulei, vibrei, soquei o volante e acho até que buzinei. Veio o intervalo e consegui cruzar o rio. O trânsito clareou, corri para a casa dos meus pais, certa de que o encontraria com os olhos grudados na TV. Entro e dou de cara com ele lavando a louça do jantar. Nem TV, nem rádio ligado. Mais por fora que jornalista em férias.

"Você não está vendo o jogo? A Lusa está ganhando! Já começou o segundo tempo", explodi em indignação e pressa. "Ah, não...", falou calmamente, enquanto continuava enxaguando uma panela. Entendi o humor dele no mesmo instante. Era calmo, otimista, gentil, simpático. E sábio. Tinha uma tática infalível para acompanhar os jogos da Portuguesa e manter-se sempre contente. Não assistir. "Se ganha, fico feliz. Se perde, fico feliz por não ter perdido meu tempo." Estava nessa vibração. Mas eu, não.

Assisti ao final do segundo tempo. Rodrigo Fabri ampliou o placar e a Lusa voou para Porto Alegre com um sólido 2 x 0 na bagagem. Lá, o Grêmio repetiu o placar. Tinha a vantagem do empate, ficou com o título. Não vi o time do meu pai ser campeão e minha ansiedade em assistir ao jogo com ele parecia carregada de intuição. Menos de quatro anos depois, eu já não teria meu pai vivo. Era naquela hora ou nunca.

Sempre gostei de esportes por influência dele. Víamos futebol, mas também corridas de Fórmula 1, ainda na era Emerson Fittipaldi, Copas, Olimpíadas, inventávamos superstições para serem quebradas, ele vinha com bacias de pipoca. Dos 30 anos que convivi com ele, quantos foram passados em frente a TV, com uma bola rolando ou rodas girando? Assistir àquele jogo, comemorar o título com ele seria uma forma de retribuir o gosto pelo esporte e sua generosidade em nunca nos impor seu time. Sabia que seria sofrimento eterno.

Anos depois, conversando com minha tia, irmã mais velha dele, ela revelou que meu avô era torcedor do Corinthians. Português, encantou-se pelo time de operários quando aqui chegou. Meu pai nasceu, meu avô já tinha passado dos 50. Tinha tempo de levar o caçula para passear nos charcos do Ibirapuera, onde, anos depois, seria inaugurado o parque. A Portuguesa, que ainda não tinha comprado o Canindé, treinava o time de futebol nos campos de várzea daquela área. Meu pai viu os jogadores, encantou-se pelo time que tinhas as cores da bandeira paterna. Virou torcedor luso. Meu avô, vendo o paradoxo, renegou o alvinegro e abraçou o time do filho. A história soou como grande relevação para mim, que sempre imaginei o óbvio: meu pai se tornara torcedor luso por causa do pai, e era o contrário.

Hoje, 28 de outubro de 2014, a Portuguesa foi rebaixada para a Série C do Campeonato Brasileiro. Fiquei triste, como meu pai provavelmente ficaria. Mas estaria ocupado com alguma outra coisa - talvez lavando louça ou brincando com os netos que não conheceu - e certamente daria para a queda a mesma atenção que deu para aquela Lusa finalista de 18 anos atrás. Nem tão triste com a derrota, nem eufórico com a perspectiva da vitória. Eu disse: era sábio. Talvez a qualidade mais em falta no Canindé, atualmente.

Sunday, October 19, 2014

Sobreviventes

Minha segunda medalha em maratonas
Em 8 de julho de 2012, quando concluí minha primeira maratona, no Rio, tive certeza de que aquela experiência tinha sido a única e que eu já estava feliz por ter completado uma prova de 42.195 metros. Passei 2013 fazendo algumas corridas de 10 km, feliz por terminá-las, além de completar minha sexta São Silvestre. Mas eis que 2014 chegou e a coceira voltou. Resolvi fazer mais uma maratona.

Depois de trocar ideias com os amigos Elisabete e Ricardo Capriotti (ele, meu chefe na Rádio Bandeirantes), decidi correr a Maratona de Buenos Aires, que foi a maratona de estreia de ambos. Totalmente plana, a prova se encaixava no meu calendário para 2014, marcada para o dia 12 de outubro. Eu precisaria abrir mão de comentar o GP da Rússia, que aconteceria no mesmo dia, mas paciência. Em 2012, também precisei faltar a um GP da Inglaterra, no caso. Estava tudo planejado, e comecei a treinar. Março de 2014.

Meu velho amigo Nelson Evencio aceitou a empreitada e me incluí entre os atletas amadores da sua assessoria. Na primeira maratona, tive a orientação da amiga Martha Maria Dallari. Nelson é presidente da Associação de Treinadores de Corrida de São Paulo. Martha foi sua vice por muito tempo, até se mudar para Brasília, no final de 2013. Ou seja, eu estava em ótimas mãos.

Tudo planejado

Logo que comecei a treinar, chegou às lojas o CD “Coração a Batucar”, da Maria Rita. Ganhei-o em uma sexta. No sábado, fui ouvindo no caminho, para a Cidade Universitária, onde treinei religiosamente aos sábados nos últimos meses. Sábado, antes das sete da manhã, não tem trânsito. Isso me permitia associar cada uma das 13 faixas a pontos do meu trajeto.

Começava na rua de casa, com a faixa de abertura, “Meu samba, sim, senhor", e ia até terminar o disco, já no caminho de volta, com “É corpo, é alma, é religião”, perto da Ponte da Anhanguera. Cada faixa caía quase sempre no mesmo ponto, coisa que só pode acontecer em São Paulo em um sábado de manhã. Para completar o caminho de volta, eu ouvia algumas músicas do CD da cantora de 2007, “Samba meu”. Ou seja, passei o treino inteiro escutando samba e não tango, da Buenos Aires que me receberia nos planos originais. Um sinal?

Chega o mês de agosto e uma série de questões pessoais e profissionais me faz mudar os planos. Ficaria inviável ir para a Argentina naquele período, e eu, depois de conversar com meu treinador, resolvi adiar minha maratona por uma semana, disputando a prova de São Paulo, que não era plana como a prova portenha. A ideia inicial, de tentar buscar um tempo abaixo de 4 horas (fiz a prova do Rio em 4h18) também foi engavetada. Se fizesse abaixo dessa primeira marca, eu já estaria feliz.

Treinos seguidos à risca, fui colhendo resultados cada vez melhores. Nelson me transmitia confiança de que era possível melhorar a marca e eu, de fato, me sentia muito confiante. Naquela altura, só por ter conseguido manter o plano de fazer uma maratona em 2014, eu já estava feliz. Mas não ficaria chateada se derrubasse meu recorde pessoal. Uns dez dias antes da prova, conversando com o Capriotti na rádio, ele sacou seu celular e checou a previsão do tempo para o dia corrida. “Más notícias...”. A previsão de máxima era de muitos graus em São Paulo, mais a condição de tempo seco que tem sido uma constante na cidade nos últimos meses. Parecia que ia ser uma prova difícil. Mas acho que ninguém poderia supor que seria tanto.

A largada, marcada para as 8h, na verdade aconteceu às 7h, pois o domingo foi o primeiro dia do horário de verão. Menos mal. Alguns minutos antes, Nelson me informou que os termômetros já marcavam 28 graus. A estratégia estava traçada e o técnico não se importou em repetir várias vezes: “se precisar, ande. Se piorar, pare. E vá se hidratando o tempo todo”. Eu repeti a ele o mesmo que havia escrito para a amiga Bete, na véspera: uma semana antes, minha mãe estava internada, com pneumonia. Passei parte do domingo com ela, no hospital. Hoje, só por tê-la bem, em casa, e eu lá, na frente do Obelisco do Ibirapuera, meu lucro já era imenso. Fique tranquilo. Vou correr para agradecer e me divertir.

A vida é dura para quem é mole

Sempre começo minhas provas em ritmo moderado, pensando em me poupar para o final. Seria cretinice fazer isso desta vez. Ou eu corria o que pudesse no começo, ou não teria condições de fazê-lo no final, pois o céu era de brigadeiro em São Paulo, um sol pra cada um. Aqueles 28 graus do começo deixariam saudade. Corri os primeiros 15 km sempre com ritmo entre 5’30 e 5’40. A primeira ameaça de boicote mental surgiu no final da avenida da raia, na USP.

Correr na Avenida Escola Politécnica é sempre um desafio. Quase sem sombras, a via habitualmente “quebra” alguns atletas. Politécnica: escola que forma engenheiros. “Seu pai era engenheiro. Não vai ser essa avenida que vai te derrubar”. O anjinho ia vencendo fácil a parada quando o diabinho sussurrou. “É, mas seu pai não fez a Poli, fez Mackenzie.” Eita... “Mas era engenheiro”, gritou o anjinho. E segui feliz.

Completei a primeira metade da prova tranquila, mantendo o bom ritmo dos primeiros quilômetros. A programação da Maratona Internacional de São Paulo incluía outras duas provas: uma de 10 km e outra de 25 km. Perto dos 25, o calor já estava forte, eu já havia andado algumas vezes pela avenida do Jóquei Clube e então encontrei o Nelson, que me esperava com Gatorade e gel de carboidrato (eu já havia consumido os dois sachês que levara no bolso do calção).

Quando cheguei perto do treinador e ele me perguntou como estava, fui sincera. “Está f...”. Junto com ele, dois integrantes da equipe Saúde & Performance. Um deles me repreendeu: “Não está, não! Você vai conseguir! A vida é dura para quem é mole!” Não pude discordar, e segui para a Marginal Pinheiros, também conhecida como a filial do inferno neste domingo paulistano.

Aos sobreviventes, as batatas

Não deixa de ser uma vingancinha saborosa correr pela pista expressa da Marginal Pinheiros ditando a ela o meu ritmo, e não ficando parada em seus habituais congestionamentos. Para acessá-la, precisamos subir o viaduto que fica ao lado de um shopping relativamente novo na cidade. Foi a segunda vez que andei na prova. Voltei a correr ao chegar à Marginal, indo na direção da Avenida Rebouças. Encontrei o Nelson mais uma vez, que parecia teletransportar-se naquele cenário insólito.

O técnico Nelson Evêncio, salvando sua atleta da desidratação


Perto do km 30, a organização da prova oferecia batatinhas cozidas com sal aos corredores. Sempre achei essas batatinhas-aperitivo algo bem sem graça. Não haveria de ser em plena Marginal Pinheiros, com aquela catinga do rio, que eu haveria de apreciar tal iguaria. Mais de 30 km, com sol a pino, tendo como sombra apenas os baixos das pontes, o físico começou a pifar. Alternei corridas e caminhadas. Em uma desses trechos em que só caminhava, uma colega passou por mim e disse: “vem, não desanima!”. E eu respondi que sim, eu iria, só estava me recuperando um pouco.

Não sei se ela também parou, ou diminuiu o ritmo, o fato é que voltei a correr e a encontrei. “Não disse que eu ia continuar?”, perguntei. E fomos correndo juntas. E começamos a conversar, o que nos permitiu encontrar um ritmo ideal para continuar correndo. Só esquecemos de combinar com o sol, que continuava fritando nossos miolos. E passamos a alternar corrida e caminhada, cientes de que, àquela altura, por volta do km 35, essa era a melhor técnica.

Descobri que ela já fez Iron Man, correu Maresias-Bertioga (75 km) solo, tem um filho de três anos. De mim, ela descobriu que aquela era minha segunda maratona, que corro há doze anos e que tenho um filho de 14. E assim fomos vencendo o inferno da Marginal Pinheiros. Quase no final daquele trajeto que percorri hoje pela manhã, mas parecer ter sido há uns três anos, porque não acabava nunca, quem surge? O onipresente Nelson, claro. O arsenal variava, e agora ele surgia com uma Coca. Eu já estava mareada de tanta água e isotônico. Nem sou fã de refrigerante, mas caiu bem à beça (à benção, Martha Maria Dallari, entusiasta da hidratação de emergência à base de refrigerante de cola).

Era hora de subir o demoníaco viaduto de novo, e fomos andando. Ao chegar à avenida Juscelino Kubitschek, km 39, a irresistível sensação de que a prova estava liquidada. Nós também estávamos, mas ignoramos esse detalhe. Foi então que nos apresentamos formalmente. Simone, Alessandra. Nelson ainda surgiu mais uma vez, agora para me dar mais Coca e um bolinho. E não foi mais embora. Estava inscrito na prova e me acompanhou quase até o final. Um cavalheiro, sumiu de cena quando a linha de chegada de aproximava. Depois, disse que os atletas daquela maratona não eram participantes, mas sobreviventes. E que, durante muitos anos, vamos lembrar desse inferno seco pelas ruas da minha São Paulo. 

Ao longo da corrida, a ideia de correr abaixo de 4 horas pareceu um devaneio. Debaixo do sol da Marginal Pinheiros, superar as 4h18 surgiu como improvável. Eu só queria terminar. Inteira (podia ser inteiramente estropiada, não tinha problema, só não queria abandonar). Cruzei a linha de chegada com 4h58, debaixo do maior calor que já senti na vida. Pouco antes, Edu me esperava. Acenei para ele. Gabriel ficou com a minha mãe, na casa dela, para minha tranquilidade. Liguei para lá e ele me perguntou como foi: “pior que parto normal!” Ele riu e sugeriu: “na próxima vez, tenha outro filho, em vez de correr outra maratona!”


Claro que, no momento, vivencio a certeza de que esta foi a última maratona da minha vida. Claro que não será. Mas uma impressão eu espero que se confirme: corri a maratona mais difícil da minha vida.

Wednesday, August 20, 2014

Corrida de rua unida contra a impunidade


Sábado, 16 de agosto, foi um dia trágico na história da corrida de rua de São Paulo: um motorista bêbado atropelou quatro atletas que treinavam no campus da Cidade Universitária, matando o corredor Álvaro Teno, de 67 anos. A atleta Eloisa Pires do Prado teve ferimentos graves e precisou passar por uma cirurgia que se estendeu pela tarde de sábado.

Para homenagear esses atletas e protestar contra mais um ato de imprudência, nós (jornalistas e blogueiros corredores) abaixo assinados convidamos todos os atletas, treinadores e simpatizantes da corrida de rua de São Paulo para um manifesto. Apoiamos o Black Run (acompanhe as informações na página do evento), que nasceu da livre iniciativa de corredores, marcado para sábado, dia 23 de agosto, 9h, na USP.

Defendemos uma manifestação pacífica, em prol da justiça, contra a impunidade, chamando a atenção da sociedade para mais um assassinato, resultante da mistura álcool e direção. Nosso objetivo é manifestar esse sentimento de fragilidade que acompanha todos nós, cidadãos, quando utilizamos avenidas, praças, canteiros e faixas exclusivas para andar, correr ou pedalar e somos vítimas potenciais permanentes desses motoristas criminosos que insistem em dirigir depois de beber.

Reiteramos que neste momento de luto, nosso objetivo é por justiça, contra a impunidade em casos como o ocorrido na USP. Qualquer outra manifestação ou situação vivenciada por nós corredores nos locais de treinamento, poderão ser discutidas num outro momento, em fórum adequado.

Nossa indignação é contra a impunidade. Nossa manifestação é a favor da vida.

Vamos participar do Black Run, no próximo dia 23 de agosto, às 9h, Praça do Relógio, na Cidade Universitária. Vestidos de preto e de forma pacífica,  cobraremos punição para o assassino de Álvaro Teno e alertaremos para o risco que milhares de pessoas sofrem todos os dias nas ruas do Brasil.

E você que é corredor, mas não mora em São Paulo, participe pelas mídias sociais com posts no sábado usando as hastags #queremospaz #naofoiacidente #corridaderua #alvaroteno

Ana Paula Alfano – jornalista
Alessandra Alves – jornalista (Rádio Bandeirantes)
Alexandre Koda – jornalista (Webrun)
Bruno Vicari – jornalista (SBT)
Carla Gomes – jornalista (Eu Atleta/Globoesporte)
Cassio Politi – jornalista
Eduardo Elias – jornalista (Fox Sports)
Iuri Totti – jornalista (O Globo)
Karine César – jornalista (Corpo a Corpo)
Nelson Evêncio (ATC – Associação dos Treinadores de Corrida)
Sergio Xavier – jornalista (Runner’s World)
Ricardo Capriotti – jornalista (Rádio Bandeirantes)
Roberta Palma – jornalista (Jornal Corrida)

Thursday, July 17, 2014

Samba session

Maria Rita e a banda "na diagnonal" (Foto Camila Camargo)
 

Nesta semana, Maria Rita retoma em Santos a turnê “Coração a batucar”, show que assisti em maio, em São Paulo. No momento em que vi o palco do Citibank Hall, minutos antes da estreia paulistana, tive a impressão de que faltava alguma coisa. Os instrumentos estavam todos dispostos no lado esquerdo, em duas fileiras. À frente, o baixo de Alberto Continentino, a guitarra de Davi Moraes e os teclados de Ranieri Oliveira. Atrás, a bateria de Wallace Santos e a percussão de Marcelinho Moreira e André Siqueira. No lado direito, o vácuo. Sendo um show de samba, ocorreu-me uma associação esdrúxula. “Parece o recuo da bateria”. Assim que Maria Rita entrou no palco, pelo lado direito, a dúvida se dissipou e ficou claro que aquele vácuo tinha sido idealizado para a movimentação da cantora. Ao longo do espetáculo, quem se dissipou foi essa certeza. Chegaremos lá.

É certo que “Coração a Batucar” é um espetáculo de samba, baseado no disco homônimo lançado em março. Das treze faixas que compõem o CD, apenas três não estão no show. O primeiro disco inteiramente dedicado ao samba da cantora (Samba Meu, de 2007) cede outras sete canções. Completam o espetáculo duas músicas de Gonzaguinha (“Comportamento geral” e “E vamos à luta”), duas músicas do álbum Elo (“Coração a batucar” e “Coração em desalinho”), uma do álbum de estreia (“Cara valente”) e uma do espetáculo Redescobrir (“Ladeira da Preguiça”). No bis, outro samba ainda não gravado em CD (“Do fundo do nosso quintal”). É um show de samba, mas não é só isso.

Quando lançou o CD, no início do ano, Maria Rita surpreendeu com a atmosfera escolhida. Na capa, ela surge vestida de preto, olhando de frente para a plateia, com uns olhos pintados também em tons escuros. Nada de lantejoulas ou guias coloridas. Nada de velas ou de confete e serpentina. Nada de samba? A sonoridade, no CD, é sofisticada, com fortíssima presença dos teclados em praticamente todas as faixas, além de um papel de destaque também para a guitarra. É, definitivamente, uma roda de samba, e também uma jam session. Quem escutasse o CD e fosse direto para o show esperaria uma jam session que, aos poucos, fosse se tornando uma roda de samba como, de certa forma, é o CD. E Maria Rita puxou o tapete sob nossos pés, abrindo o show com a última música do álbum (“É corpo, é alma, é religião”), uma animada celebração ao próprio samba.

Tática para animar o público, provavelmente, reforçada pela segunda música do espetáculo (“Cara valente”), um dos maiores sucessos de Maria Rita, daqueles que a plateia canta junto. Não parece muito difícil para ela envolver o público. O novo CD tem pouco mais de quatro meses na praça (considerando o lançamento virtual, que veio antes) e é impressionante ouvir o coro acompanhando a cantora em praticamente todas as músicas. Maria Rita hoje é uma cantora que literalmente arrasta multidões. Ela hoje desfruta de uma plateia devotada, que parece segui-la quase messianicamente. Mas Maria Rita não passa recibo disso. Fala bem menos com o público do que o fazia no show “Redescobrir”. “Eu gosto mesmo é de cantar”, disse no show de estreia em São Paulo, e pôs-se a guiar a plateia por um caminho cujas pistas estavam dadas no CD e que me fez desconstruir a ideia de que aquele vácuo, do lado direito, era “só” para ela se movimentar.

O ponto de inflexão do espetáculo chega de mansinho, com uma música aparentemente “menor” do CD. “Bola pra frente” é uma canção composta por Xandi de Pilares e Bernini. Tem uma estrutura simples, com uma melodia que se repete nas quatro primeiras estrofes, utilizando a mesma lógica para as quatro estrofes seguintes. Deságua em um refrão curto, de ritmo marcado, lembrando a tradição dos antigos jongos africanos que ajudaram a moldar o samba. Pois é essa estrutura simples, algo repetitiva, que permitiu à roda de samba transmutar-se em jam session no espetáculo.


Maria Rita, no show Coração a Batucar (foto: Wesley Mesquita)

A repetição dos temas, em “Bola pra frente”, abriu caminho para que cada músico da banda expusesse de fora inapelável sua relevância no espetáculo e, então, a disposição dos instrumentos no palco fez muito mais sentido. O fato de estar “meio de lado” não era necessariamente para dar espaço para Maria Rita sambar (até porque ela sambou no palco inteiro, diga-se). Muito mais, na verdade, para dar a cada integrante daquela pequena escola de samba o mesmo peso que a própria cantora tinha no cenário. Uma disposição convencional, com os músicos no fundo do palco e a cantora à frente criaria uma condição de coadjuvantes que aqueles profissionais, definitivamente, não mereceriam.

Mas não foi só isso que “Bola pra frente” proporcionou ao show. A música inaugurou o capítulo mais engajado do espetáculo, enfileirando quatro músicas de cunho social, sendo duas delas de Gonzaguinha, oriundas da apresentação de Maria Rita no Rock in Rio do ano passado. No lançamento do novo disco e na estreia da turnê, a cantora explicou em entrevistas a opção por produzir um novo disco de samba, como tendo sido algo espontâneo, meio incontrolável. E não deixou de apontar que a veia social, ensaiada no show do Rock in Rio e presente em diversos momentos de sua trajetória profissional de onze anos, está latente e, em breve, deve render frutos.

Só que Maria Rita, ás vésperas de completar 37 anos, hoje é também uma artista madura e sabe onde pisa. Lançar um disco “político” em ano eleitoral, e dar de bandeja a oportunidade de ser lida como propaganda deste ou daquele? E dar munição para a selvageria de campanhas eleitorais cada vez mais desqualificadas? Não sei se ela fez esse cálculo. Se não fez, benza Deus. A intuição a protege, e tal merecimento não pode ser à toa. Mas, do mesmo jeito que entoou “Minha alma”, d’O Rappa, em meados da década passada, parecendo renovar o “Ouro de tolo” de Raul Seixas, ou que bradou “Menino” e cantou que “quem cala sobre teu corpo consente na tua morte” em plenos tempos de Amarildo desaparecido, Maria Rita dá seu recado político em “Coração a batucar”, que é alegre celebração ao samba, que é virtuosismo de músicos, que é dedo na ferida. Uma samba session, por que não?

Sunday, July 13, 2014

Sarriá, Mineirão, razão, coração

Algumas horas depois do 7 x 1 para a Alemanha, meu filho me perguntou se aquela derrota era pior que a desclassificação do Brasil na Copa de 1982, história que me marcou de forma decisiva e que mencionei a ele em várias ocasiões. No impacto da derrota desconcertante, não soube o que responder. Naquele mesmo dia, meu colega Thiago Alves me perguntou algo semelhante via Twitter. Nesse momento, eu cheguei à resposta, mas achei que valia a pena ir um pouco mais a fundo nela.

7 x 1 para a Alemanha: não foi jogo, foi massacre; em 1982, eu assisti a um jogo de futebol


Eu tinha 12 anos na Copa de 1982, a da Espanha, do Naranjito, da seleção extraordinária de Telê Santana, com Zico, Júnior, Falcão, Oscar, Éder e meu ídolo maior, Sócrates. Aquele ano produziu marcas tão profundas na minha vida que, algum tempo atrás, ao preparar uma apresentação para alunos de uma faculdade de Jornalismo, percebi que foi entre janeiro e dezembro de 1982 que não apenas me decidi por ser jornalista como fixei alguns dos valores mais importantes do meu caráter.

Na ordem, o ano de 1982 viveu três acontecimentos de repercussão nacional que me impactaram fortemente: a morte de Elis Regina, em janeiro, a Copa do Mundo, entre junho e julho, e a consolidação da Democracia Corintiana, coroada com o título do Campeonato Paulista pelo Corinthians, em dezembro. Cada um a seu modo, os eventos provocaram em mim a mesma sensação - de querer fazer parte - e a maneira de concretizar isso seria escolhendo uma profissão que pudesse me abrir caminhos entre assuntos tão díspares quanto a cultura e o esporte. Jornalismo, meu filho, é isso: é ser especialista em generalidades. O jornalista vai alargando seu conhecimento sobre tantos assuntos, de forma tão superficial, que chega ao final da carreira sabendo nada sobre todos os temas. Ao contrário dos médicos e advogados, que se aprofundam tanto sobre algo tão específico que se aposentam sabendo tudo sobre coisa nenhuma (essa comparação sempre me faz lembrar da piada do "especialista em direito". Te contei?)

Vínhamos de uma Copa na qual fomos "campeões morais", desclassificados por uma anfitriã que comprou sua presença na final por meio de suborno à seleção peruana. Tínhamos um time magnífico, um técnico genial, afeito ao toque de bola. Começamos com um jogo duro, contra a União Soviética, com Waldir Peres levando um frango, ganhando por 2 x 1 suado, e fomos evoluindo no desempenho, enfileirando duas goleadas (Escócia e Nova Zelândia), para desaguar em uma revanche aguardada e vencida com louvor sobre os argentinos. Eles eram o belzebu das nossas vidas. Passamos por eles, tirando o jovem Maradona de campo, enfezadinho, pronto, a Copa é nossa!

Paolo Rossi passa pelo lateral Júnior na partida que desclassificou o Brasil da Copa de 1982


Na minha cabeça de 12 anos, o pior já tinha passado, a Itália era um pedregulho a ser retirado do caminho, depois de transpor a montanha argentina. Não acho que seja pretensão imaginar que a própria seleção brasileira imbuiu-se desse espírito. Em nenhum momento o time do Brasil menosprezou a Itália, mas manteve-se fiel a seu toque mágico de bola, e talvez tenha cometido seu grande pecado ao ver em Paolo Rossi um jogador comum, o que era plenamente aceitável, posto que esse meu pesadelo eterno, esse delírio dos infernos, esse carcamano sem coração não tinha feito nada na Copa até então. Nada, zero, vácuo. Nenhum gol. E precisávamos só de um empate. 1 x 0. Gol de Rossi. Zico empata, 1 x 1. 2 x 1. Gol de Rossi. Falcão empata, 2 x 2. Aos trinta do segundo tempo, o golpe final, certeiro. 3 x 2. Gol de Rossi. E assim acabou.

Mas foi um jogo, uma disputa, um placar apertado. Os 7 x 1 na semifinal da Copa de 2014 foi um vareio, uma surra, uma demonstração de força inequívoca. Ou uma demonstração de fraqueza absoluta?

No aspecto esportivo, a derrota da seleção brasileira para a alemã, no Mineirão, foi muitas vezes pior que a chamada tragédia do Sarriá.

Mas a goleada história deste ano me pegou com 44 anos, um filho, contas a pagar, compromissos profissionais diversos a cumprir, os treinos de mais uma maratona daqui três meses. Aos doze anos, eu tinha a escola e a Copa. Acabou Copa, meu mundo caiu. A razão me mostra, por todos os ângulos, que o Mineirão foi uma derrota muito pior. O coração me lembra que o Sarriá, que nem existe mais, nunca vai sair da minha cabeça. Maldito Paolo Rossi...


Friday, May 02, 2014

O samba nasceu em mim

Capa do novo álbum da cantora 

Quando se anunciou que Maria Rita estava preparando seu novo disco e que ele teria apenas sambas, era natural que se pensasse que estava a caminho um “Samba meu” número 2. Gravado em 2007, “Samba meu” foi uma guinada corajosa da cantora em seu terceiro álbum de estúdio. Nascida na MPB e logo alçada à condição de uma das principais cantoras do gênero, Maria Rita rasgou o rótulo. Concebeu um disco e um show inteiramente ambientados no universo do samba. Foi um grande sucesso, levado a várias cidades brasileiras em espetáculo grandioso, mostrando uma cantora com personalidade cada vez mais marcante e uma mulher a cada dia mais segura, sensual e bonita. À época, escrevi sobre “Samba meu” neste mesmo blog.

A aventura de Maria Rita no samba não havia começado ali. “Cara valente”, do primeiro álbum, já flertava com o gênero. Em “Segundo”, seu disco de 2007, “Recado” e “Conta outra” assinalavam a presença do gênero entre canções de MPB. Tudo, ainda, em um universo fortemente jazzístico, ancorado no trio teclado-contrabaixo-bateria que acompanhou a cantora em seus primeiros trabalhos. “Samba meu” pôs o pé no terreiro, mergulhou em pandeiros, tamborins e cuícas. Era um disco de samba e ponto. E, de fato, o samba nunca saiu do repertório da cantora. No disco seguinte, “Elo”, as presenças de “Coração a batucar” e “Coração em desalinho” preenchiam a cota de samba e, no trabalho seguinte, “Redescobrir”, uma profusão de canções do gênero: “Saudosa maloca”, “Ladeira da Preguiça”, “Vou deitar e rolar”. No ano passado, ao participar do Rock’n’Rio, a abusada escolheu um repertório baseado todo em músicas (sambas!) de Gonzaguinha. No Rock’n’Rio, sim senhora! Rotule-me se for capaz...

Não seria, portanto, nada estranho que Maria Rita gravasse um novo disco de sambas, mas a primeira audição já mostrava que “Coração a batucar” não era um “Samba meu” número 2. O segundo disco só com sambas da cantora não é mais do mesmo, por várias razões, e todas convergem para ela mesma.

Antes, há que se entender a razão pela qual Maria Rita decidiu gravar mais um disco inteiramente dedicado ao samba. Evidentemente, porque ela gosta de samba e, diacho!, a gente costuma fazer melhor aquilo que faz com prazer. Maria Rita tornou-se membro de comunidades de samba de relevo, como o bloco Bola Preta, no Rio, e a escola de samba Vai-Vai, em São Paulo. Mas há uma razão secundária que me parece bastante plausível, embora fruto só da minha percepção: Maria Rita carrega a bandeira do samba para dentro da MPB, como uma espécie de missão.

Em décadas passadas, importantes nomes da MPB baseavam suas carreiras em sambas ou incluíam sambas regularmente em seus repertórios: Chico Buarque, Paulinho da Viola, Clara Nunes, Beth Carvalho, Caetano Veloso, Maria Bethânia e, claro, Elis Regina. Hoje, escasseiam artistas fazendo essa ponte. Marisa Monte gravou um belo disco de sambas há alguns anos, mas, de forma geral, a fronteira entre MPB e samba hoje parece mais sólida. Ouça uma  rádio dedicada à MPB contemporânea e tente ouvir um samba. Vai ser difícil. Com Maria Rita empunhando essa bandeira, é possível ouvir Arlindo Cruz ou Zeca Pagodinho nesse ambiente. Ela sabe que tem essa influência, que eu tenho quase certeza ser compreendida por ela como responsabilidade.

“Coração a batucar” é o trabalho de uma artista madura, a começar pelo fato de ter produção e direção musical da própria Maria Rita. Falando em responsabilidade, não é desprezível a opção por acumular estas funções à de cantora. Não que fosse pouco “apenas” cantar, mas Maria Rita quis mais e produziu um disco que não é mera compilação de músicas, é um conceito exposto em treze canções, uma história contada, com começo, meio e fim. Esta é uma das razões pelas quais “Coração a batucar” não é “mais um disco de samba” da cantora. Mas há outra, mais importante e evidente para quem escuta o CD já na primeira vez: a voz. Maria Rita nunca cantou tão bem, e com tanta personalidade, e com tanta coragem.

Quem me conhece há mais tempo sabe que sou comentarista de Fórmula 1. Ao escutar “Coração a batucar” pela primeira vez, por vezes eu me enxerguei à frente de Lewis Hamilton, ou de Fernando Alonso, ou de Sebastian Vettel ou, em um rasgo de nostalgia, de Ayrton Senna ou de Gilles Villeneuve. Cada vez que Maria Rita embalava em uma frase musical que, por lógica, terminaria em um agudo improvável, eu sentia o mesmo arrepio de quando um desses pilotos indomáveis armava o bote para fazer uma ultrapassagem por demais arriscada. Passa de coragem, é destemor quase irresponsável, é quase ação suicida. Não é possível, ela não vai alcançar. Não pode ser, ele vai bater. Um arrepio de mãe vendo o rebento equilibrar-se na bicicleta pela primeira vez. Mas ela alcançou, fácil, e várias vezes, e meu sorriso foi como o de ver Hamilton defender-se de um ataque feroz do companheiro Nico Rosberg no último GP do Bahrein. Sorriso de gol de bicicleta, sorriso de ver e ouvir a beleza materializada em um CD que ganhei de presente. Deve ter custado uns R$ 25,00. Custasse R$ 250,00, era barato.

Maria Rita na Fundição Progresso (RJ) - foto de Wesley Mesquita

O CD abre com “Meu samba, sim senhor”, cartão de visita ideal de quem se anuncia “mais uma vez, aqui estou”. E vai sambando miudinho, crescendo na intensidade instrumental e vocal, nas faixas seguintes. O primeiro desses mergulhos no ar – sem cama elástica por baixo – a me chamar atenção foi em “No meio do salão”, música que poderia muito bem ser a versão fêmea ferida de “Sem compromisso”, clássico de Geraldo Pereira eternizado na voz de Chico Buarque. Ele diz “você só dança com ele e diz que é sem compromisso (...) quem trouxe você fui eu, não faça papel de louca, pra não haver bate-boca dentro do salão”. Ela reclama “eu te trouxe pro samba, para comigo dançar, como se atreve, dançar com outra pra quê?”. A ira da mulher traída manifesta-se com o drama que merece quando a cantora disfere “quer me fazer de palhaça, eu já não quero nem graça, da próxima vez e outra vez eu não quero falar...” em uma modulação extraordinária, desembocando em um agudo magnífico.

A história vai ficando densa e séria, como se a brejeira cantora da faixa de abertura fosse mergulhando no universo desse samba que não é só alegria e celebração, mas veículo para também transportar dores de amores e outros dissabores desta vida, ao chegar à décima faixa, “Rumo ao infinito”, canção de Arlindo Cruz escolhida como música de trabalho do CD. Arlindo parece ser o compositor preferido de Maria Rita nesse gênero, e, se é mesmo, não é por acaso. São três as composições dele no álbum. Provavelmente, as mais belas. Escutei “Rumo ao Infinito” como se fosse também uma resposta, um diálogo com outra canção do mesmo autor, “Trajetória”, gravada em “Samba meu”. Nesta, um ser apaixonado e desiludido anuncia sua partida, após perceber-se desprezado. “Agora queira dar licença que eu já vou, deixa assim, por favor...”. Mais íntegro e sereno, o par parece responder, em “Rumo ao Infinito”: “vem cá, me dê um abraço, isso é coisa de momento, eu sei que vai passar”. Tudo perfeito: vocal, arranjo, música e letra encaixadinhas. Que grande clássico Maria Rita perpetrou nesse trabalho...

E emenda com outra de Arlindo Cruz, “Mainha me ensinou”, e quem disse que não pensa em Elis Regina ao ouvir esta canção é mentiroso ou muito distraído. Mainha ensinou Maria Rita e todas as outras cantoras que vieram depois dela como é que se faz. Ninguém aprendeu mais que a filha, geneticamente aparelhada para fazer isso melhor que ninguém. A música não descreve uma mãe cantora ensinando o ofício à filha. Mostra uma mãe sábia ensinando a cria a ser um ser humano por inteiro, a ser gente. Depois de ter cantado o repertório de Elis Regina e de ser laureada por público e crítica por isso, Maria Rita hoje não tem medo de nenhum grave, nenhum agudo, nenhum desafio profissional parece-lhe mais arriscado. E, primeira cereja do bolo, emenda “Mainha me ensinou” com uma música da compositora Joyce, "No mistério do samba", a mesma de “Essa mulher”, tida como uma das canções eternizadas por Elis que mais expressam a percepção da própria Maria Rita com sua vida e sua escolha por ser cantora.


Nesta altura, o clima do álbum já é de pura celebração e homenagem ao samba. Nada mais apropriado que encerrá-lo com “É corpo, é alma, é religião”, do mesmo Arlindo. Espécie de testamento da própria cantora, a letra começa dizendo: "eu não nasci no samba, mas o samba nasceu em mim", e se desenvolve em grande apoteose carnavalesca, encerrando um extraordinário novo trabalho de Maria Rita. Extraordinário, não: "Coração a batucar" é o melhor disco já gravado por Maria Rita. Arranjou pra cabeça, cantora... É óbvio que mal podemos esperar pelo próximo.

Monday, March 10, 2014

Relato de um bagaço


O cinema no final da tarde de domingo está virando hábito. De verdade, prefiro o final da tarde ou a noite de sábado, ou o início da tarde de domingo. Esse é campeão. Enquanto uns lotam restaurantes, vou ao cinema em sessões menos concorridas. Mas meu filho anda com um tédio imenso das noites de domingo, antevendo o início da semana, a volta à escola. Preencher o horário com cinema tem sido um antídoto eficaz. Na tarde de sexta, leio no Twitter uma dica - quase súplica - do crítico Pablo Villaça: "se você for assistir a um único filme neste sinal de semana, veja 'Até o fim', com Robert Redford".

Ler as críticas do Pablo no Cinema em Cena é outro hábito dos últimos tempos e recomendo o site. (É bom ressaltar que meu apreço a esses textos começa no cinema, obviamente, mas se estende para a ideologia do crítico, que expressa pensamentos muito próximos aos meus e aos valores que tento transmitir para o meu filho. Para rotular, um pensamento de esquerda.)  Desenvolvi um método para essas leituras: abro a crítica e vejo a nota que ele deu. Se for alta, aposto no filme. Depois de visto, então leio a crítica inteira, para não influenciar a minha própria visão. Com a súplica via Twitter, nem fui conferir a nota. Programei "Até o fim" para fechar o final de semana. Fui com meu filho e convidei minha mãe. Gostei muito, Gabriel detestou, minha mãe não se recuperou do choque da primeira cena, ao ver o galã de sua juventude com o rosto vincado. Ou, para usar sua própria definição, transformado em um "bagaço".

Para saber mais sobre o filme, melhor ler aqui. A motivação deste texto é outra. A trajetória do personagem de Redford em "Até o fim" em inúmeros momentos me lembrou o livro "Relato de náufrago", de Gabriel García Márquez. O livro do vencedor do Nobel de 1982 é, na verdade, uma grande reportagem sobre um marinheiro que esteve dez dias à deriva numa balsa na região do Caribe. Há um contexto político na história verídica que traz implicações na vida do marinheiro e na publicação da própria reportagem e vale muito a leitura. Bem, meu filho não se chama Gabriel por outro motivo, então não estranhe quando eu recomendar qualquer livro de García-Márquez.

Algumas das cenas de "Até o fim" parecem a filmagem do texto do colombiano. Uma das passagens mais bonitas do filme mostra um cardume circundando o bote do personagem de Redford. No livro, diz-se o seguinte: "(...) Os peixes nadavam na superfície, o mar estava limpo e sereno. Havia tantos animais bonitos e tentadores à volta da embarcação que pensei que poderia agarrá-los aos punhados.".

Em determinado ponto do filme, o homem tenta pescar, de forma rudimentar, apenas com linha e algo que parece ser uma isca artificial. Tempos depois, sente a fisgada e começa a puxar a linha, na esperança de pegar um peixe. Quando o animal chega às suas mãos, é surpreendido por um peixe maior (talvez um tubarão?) que lhe arranca a presa. No livro, o náufrago consegue capturar um peixe com as próprias mãos, já que não dispunha nem de linha nem de isca. Destrincha o animal com a ajuda de uma chave que ficara em seu bolso, dá duas mordidas na carne crua e resolve guardar o resto, tentando lavar o que sobrou no peixe na água do mar. "(...) Distraidamente, agarrei-o pelo rabo e mergulhei uma vez por fora da borda. (...) Foi então que senti a invertida e o violento matraquear das mandíbulas do tubarão. (...) Voltei a puxar com todas as minhas forças, mas já não havia nada em minhas mãos. O tubarão levara minha presa."

O livro também descreve a aproximação metódica de tubarões, sempre à mesma hora do dia, como se a fazer companhia macabra para o náufrago lutando pela vida. No filme, os tubarões não chegam a ser uma ameaça real à integridade física do homem, mas a visão de um cardume desses peixes sob o bote salva vidas me remeteu imediatamente ao livro, lançado em 1970. Talvez o diretor e roteirista do filme, J.C.Chandor tenha se inspirado livremente no relato do marinheiro colombiano, editado por García-Márquez.

Talvez os relatos de náufragos sejam simplesmente muito parecidos. O acidente do filme acontece no Oceano Índico. O do livro, no Mar do Caribe. No filme, um homem velho. No livro, um jovem marinheiro. Mar, sol inclemente, o breu da noite, alucinações, sede, fome, solidão, tudo está lá, no Índico e no Caribe. Nos dois casos, a centelha de vida pulsando inexorável, como se fosse irresistível lutar por ela, mesmo quando tudo pareça perdido. O final do livro de García-Márquez torna-se desconcertante, pelo rumo absurdo que a história toma, em função do contexto político da época. O final do filme, mais poético e ambíguo, traduziu-se para mim em renascimento, seja em que dimensão se entenda isso.

Monday, January 27, 2014

AíPod: para deixar Wagner de boca aberta


Se o termo existisse no século 19, seria possível descrever Richard Wagner como um artista multimídia. Maestro, compositor, diretor de teatro e escritor, Wagner tornou-se um daqueles imortais em função de suas óperas. Sua obra-prima - "O anel do Nibelungo" - é uma tetralogia que inclui as óperas "O ouro do Reno", "As valquírias", "Siegfried" e "O crepúsculo dos Deus". Wagner criava sob o conceito de "obra de arte total", enxergando a ópera como a expressão completa da arte, reunindo música, teatro, poesia e artes plásticas.

Bem, estamos no século 21. Não que as óperas tenham caducado como gênero. Atualizações são possíveis e bem-vindas, e mesmo as montagens mais convencionais mantêm seu público. Em 2012, assisti a uma montagem de "Crepúsculo dos Deuses" que incorporava elementos do bumba-meu-boi e colocava Siegfried vestindo calça jeans. O que parece distante, hoje, é engessar um criador no formato tradicional da ópera: uma história (dramática ou bufa), contada sob a forma de música, apoiada em recursos cênicos convencionais (cenário, figurino, iluminação). O que não quer dizer que se tenha perdido o conceito de "obra de arte total".

Até Wagner concordaria. Quer ver?

Em vez de orquestra, coloque uma banda com cinco músicos. No lugar de uma história linear, várias pequenas situações aglutinadas. Em vez de cenários estáticos, por que não lançar mão de telões no fundo do palco? E já que vivemos em uma era verdadeiramente multimídia, o que nos impede de multiplicar as formas de interação entre os atores com recursos como tablets e webcam? Como na ópera, lance mão de atores/cantores, se possível que dancem também. Porque, afinal, a atuação humana continua sendo insubstituível. História, música, cenário, bel canto e interpretação: o espetáculo "AíPod", em cartaz no Teatro do Mube, pode até não ser uma ópera, mas desafio quem for assisti-lo a dizer que ali não está, redivivo, o conceito da "obra de arte total".

A concepção do espetáculo é do ator e diretor Edu Berton. No libreto (ops, folheto) do espetáculo, ele deixa claro que se trata de uma criação coletiva. Além de criador da peça/show/espetáculo multimídia, Edu é um extraordinário ator, que se transmuta de locutor a personagem de rádio novela, passando por criações impagáveis como um calouro de programas tipo "The Voice", além da hilária imitação (incorporação?) do cantor Renato Russo.

Ao lado do ator/diretor, a atriz, cantora e bailarina Simone Gutierrez. (Uma historinha rápida, antes: Simone está atualmente no ar na novela Joia Rara, da TV Globo. Sigo a trama pelo menos duas vezes por semana, religiosamente quando estou correndo na esteira da academia. Dia desses, em uma cena de casamento, a personagem de Simone começa a cantar a "Ave Maria" de Gounod. Confesso que não sabia que a atriz era também cantora e fiquei atônita com a potência de sua voz, sua afinação, em resumo, era uma diva na TV. Sou dessas: comecei a chorar enquanto corria! Sigo Simone no Twitter e perguntei se era ela mesma cantando. Respondeu que sim e eu imediatamente me candidatei a vê-la ao vivo quando ela estivesse em um musical. "AíPod" reestrearia na semana seguinte. Fui ver a peça sem ter muita informação.)

Oh, boy...

Além do conceito inovador (seria isso a ópera do século 21?), fiquei encantada com a qualidade dos músicos - Cézar Benzoni (violão e bandolim), JP Silvestre (bateria e percussão), André Sangiovanni (baixo), Luiz Panini (guitarra) e André Hã (teclados), além do próprio Edu Berton, que em alguns números também toca violão e teclado (!). É fraco o rapaz... Além de serem músicos extraordinários, mostram a criatividade ao criar arranjos que literalmente recriam canções de maneira instigante, subversiva até. Lembra de "Chega de Saudade", praticamente uma pedra fundamental da Bossa Nova. Esqueça. Aqui, é puro rock'n'roll. Gente competente como a banda AíPod pega canções pop-chiclete e as transforma em obras de relevo. Eu nunca daria muita coisa por "True Colours", da Cindy Lauper, ou por "Faith", do George Michael, e eles reabilitaram meus ouvidos (preconceituosos?) para essas verdadeiras pérolas.

Mas, Simone... Caramba! Quando for ver o espetáculo, você, amigo leitor, já estará hipnotizado pela capacidade que ela tem de fazer rir e emocionar na mesma intensidade. E de como canta bem qualquer estilo, em português e em inglês. Mas quando ela começar a cantar "Dirty man", de Joss Stone, lá no céu (e no telão) Alberta Hunter estará abençoando. E quem estiver na plateia precisará se beliscar para ter certeza de que tanta voz cabe em uma mulher de um metro e meio de altura. Se você tiver sorte, não precisa se beliscar a si mesmo. Talvez ela mesma o faça. E mais não digo!

Como radialista, apaixonada por esse veículo, não tinha como eu não me encantar com "AíPod". Como amante de música, que aos 13 anos decidiu ser jornalista por influência do programa de Zuza Homem de Mello na rádio Jovem Pan, eu só podia mesmo me apaixonar pelo espetáculo. Mesmo que você nem goste tanto assim de rádio, ou de ópera, ou de viajar na maionese como eu, um conselho: vá ver AíPod. Porque você pode não gostar muito de nada disso, mas se gosta de você mesmo, mereça esse presente.

Quer saber mais? Acesse aqui.